Relevância Acadêmica do tema
Vários foram os pesquisadores que se preocuparam com a relação entre cinema e história. Não tenho a intenção de apresentar a maneira pela qual esta questão foi sendo pensada ao longo do tempo. Podemos, no entanto, afirmar que ela é tão antiga como o próprio cinema, como vemos em um documento de 1898, publicado na revista Cultures¹. No caso brasileiro, encontramos em José Honório Rodrigues, por exemplo, em um livro publicado em 1952, reflexões acerca das possibilidades que o cinema oferece para a pesquisa histórica². A partir dos anos 70, o cinema, elevado à categoria de "novo objeto", é definitivamente incorporado ao fazer histórico³. Um dos grandes responsáveis por essa inclusão foi o historiador francês Marc Ferro e seu texto mais conhecido é O filme: uma contra-análise da sociedade?, publicado no Brasil em 1976 em História: novos objetos, livro organizado por Jacques Le Goff e Pierre Nora.
Ferro trabalha com a ideia de que o cinema não é uma expressão direta dos projetos ideológicos que lhe dão suporte, dado que deve ser ressaltado: um filme apresenta, de fato, tensões próprias. Porém, alguns reparos devem ser feitos à sua metodologia. Em primeiro lugar, o historiador acredita que uma "realidade" pode ser apreendida completamente pelo cinema. Neste sentido, cabe destacar o uso constante, em sua reflexão, das palavras revelar e registrar [4], como se o próprio filme não exercesse um papel de mediação com o social. Por outro lado, afirmar a possibilidade de recuperar o "não visível" através do "visível" é contraditório, já que esta análise vê a obra cinematográfica como portadora de dois níveis de significado independentes. Este raciocínio só tem sentido para aqueles que, ao analisarem um filme, separam da obra um enredo, um "conteúdo", que caminha paralelamente às combinações entre imagem e som, ou seja, aos procedimentos especificamente cinematográficos.
Um outro aspecto da obra de Ferro deve ser analisado criticamente à luz de grupo que ora se constitui. Para o autor, a "contra-história" elaborada pelo cinema seria complementar à realizada pela tradição escrita [5]. Em seus textos, o documento fílmico só é importante por confirmar o que lhe é exterior, ilustrando as teorias fornecidas pelo exame da documentação escrita [6].
Para se chegar à "contra-história" através do cinema, o historiador acredita que o crítico deve se ater à: sociedade que produz o filme; própria obra; relação entre autor, obra cinematográfica e sociedade; história do filme (as várias versões que teve, a sua recepção por parte da crítica, do público, etc...). Estes procedimentos de análise, segundo Ferro,
"derivam de diferentes metodologias (história, literatura, psicanálise, análise da decupagem e da filmagem, etc.); todas estas aproximações não igual e uniformemente operatórias; a análise de cada filme procede da experimentação de cada uma destas aproximações, de sua aplicação ao conteúdo aparente de cada substância do filme (imagem, música, diálogos, etc.), de sua aplicação à combinação desta substâncias, à análise do roteiro, da decupagem, etc." [7].
Apesar deste comentário, a presença destas diversas metodologias não ocorre com tanta fluidez e freqüência como anunciado, com exceção da análise que Ferro faz de Jud Süss, de 1940, de Veit Harlan [8].
Não acreditamos que a análise das relações entre cinema e história possa ser elucidada a partir das dicotomias "explícito" - "implícito", "aparente" - "latente" e "visível" - "não - visível". Não estamos preocupados, também, em enxergar um produto audiovisual como um exemplo de "contra-história" do período, já que os pontos de contato e de refração do filme com os diversos projetos ideológicos que lhe dão suporte impedem uma classificação tão niveladora da obra. As tensões existentes manifestam-se por meio da recuperação daquilo que para Ferro é secundário: a análise fílmica.
Nos anos 90, a partir deste e de outros referenciais, o cinema ingressa de maneira definitiva no universo do historiador brasileiro. Livros, teses, dissertações de mestrado, artigos em publicações especializadas e diversos tipos de materiais paradidáticos atestam a consolidação de um campo de trabalho no qual o fazer histórico procura integrar a dimensão imagética. Um indicativo deste fortalecimento no que diz respeito à historiografia estrangeira é, por exemplo, a presença na The American Historical Review, desde 1997, de uma seção dedicada ao comentário histórico de filmes que contribuem para o entendimento do passado e, conseqüentemente, para o debate histórico.
Em sintonia com este fértil momento, apresentamos a proposta de uma página da web dedicada ao exame das relações entre cinema, televisão e história. As atividades propostas e realizadas tem por objetivo contribuir para a consolidação teórica de uma área de pesquisa já incorporada nas atividades exercidas em sala de aula e nos diversos meandros do labor acadêmico.
Notas
[1] G. M. S. Le cinéma et l'histoire: un document de 1898. In: Cultures, (1): 233, 1974. Segundo o artigo, o autor do documento, Boleslas Matuszewski, era "consciente do que era história, sensível ao que poderia ser o cinema (...) analisando as relações mútuas destas duas formas de expressão".
[2] A pesquisa histórica no Brasil, 4ª ed., 1982, p. 174 - 176. O historiador está particularmente preocupado com as possibilidades de "falsificação" do cinema. Para ele, "toda a crítica externa e interna que a metodologia da história impõe ao manuscrito impõe igualmente ao filme. Todos podem igualmente ser falsos, todos podem ser 'montados', todos podem conter verdades e inverdades".
[3] Esta incorporação ocorre nos domínios da chamada História Nova. Esta corrente do pensamento historiográfico francês, em linhas gerais, relativiza a importância do fato histórico, pois "o facto não é em história a base essencial de objectividade ao mesmo tempo porque os factos históricos são fabricados e não dados e porque, em história, a objectidade não é pura submissão aos factos" (Jacques Le Goff. História. In: Enciclopédia Einaudi, Memória - História, p. 167). Ver também Jacques Le Goff e Pierre Nora (orgs), História: novos objetos, 1976, e Jacques Le Goff, "L'histoire nouvelle", In: Jacques Le Goff e outros (orgs.), Les Encyclopédies du Savoir Moderne - La Nouvelle Histoire. 1978, p. 210 - 241.
[4] Além de "O filme: uma contra-análise da sociedade?", op. cit., p. 213, ver também "Société du XXe. siècle et histoire cinematographique", In: Annales, (3):584, 1968.
[5] L'histoire sous surveillance, 1985, p. 116 e 119.
[6] O historiador avalia a potencialidade da fonte em função do documento escrito, do saber sobre o passado, ancorado na história e no fato. "Assim os documentos 'vivos' permitiriam mostrar melhor que nunca o papel das multidões e a responsabilidade da opinião pública na origem deste conflito; mas, em contrapartida, era praticamente impossível refazer uma seqúência que revelasse ao espectador as causas econômicas da guerra; ou a relação entre estas causas e as causas políticas" (Cf. "L'experience de La Grande Guerre", In: Annales, 20 (2): 333 - 334, mars - avril 1965).
[7] Analyse de film. Analyse de sociétés, 1975, p. 55.
[8] Cinéma et Histoire, 1977, p. 50 - 51.
Ferro trabalha com a ideia de que o cinema não é uma expressão direta dos projetos ideológicos que lhe dão suporte, dado que deve ser ressaltado: um filme apresenta, de fato, tensões próprias. Porém, alguns reparos devem ser feitos à sua metodologia. Em primeiro lugar, o historiador acredita que uma "realidade" pode ser apreendida completamente pelo cinema. Neste sentido, cabe destacar o uso constante, em sua reflexão, das palavras revelar e registrar [4], como se o próprio filme não exercesse um papel de mediação com o social. Por outro lado, afirmar a possibilidade de recuperar o "não visível" através do "visível" é contraditório, já que esta análise vê a obra cinematográfica como portadora de dois níveis de significado independentes. Este raciocínio só tem sentido para aqueles que, ao analisarem um filme, separam da obra um enredo, um "conteúdo", que caminha paralelamente às combinações entre imagem e som, ou seja, aos procedimentos especificamente cinematográficos.
Um outro aspecto da obra de Ferro deve ser analisado criticamente à luz de grupo que ora se constitui. Para o autor, a "contra-história" elaborada pelo cinema seria complementar à realizada pela tradição escrita [5]. Em seus textos, o documento fílmico só é importante por confirmar o que lhe é exterior, ilustrando as teorias fornecidas pelo exame da documentação escrita [6].
Para se chegar à "contra-história" através do cinema, o historiador acredita que o crítico deve se ater à: sociedade que produz o filme; própria obra; relação entre autor, obra cinematográfica e sociedade; história do filme (as várias versões que teve, a sua recepção por parte da crítica, do público, etc...). Estes procedimentos de análise, segundo Ferro,
"derivam de diferentes metodologias (história, literatura, psicanálise, análise da decupagem e da filmagem, etc.); todas estas aproximações não igual e uniformemente operatórias; a análise de cada filme procede da experimentação de cada uma destas aproximações, de sua aplicação ao conteúdo aparente de cada substância do filme (imagem, música, diálogos, etc.), de sua aplicação à combinação desta substâncias, à análise do roteiro, da decupagem, etc." [7].
Apesar deste comentário, a presença destas diversas metodologias não ocorre com tanta fluidez e freqüência como anunciado, com exceção da análise que Ferro faz de Jud Süss, de 1940, de Veit Harlan [8].
Não acreditamos que a análise das relações entre cinema e história possa ser elucidada a partir das dicotomias "explícito" - "implícito", "aparente" - "latente" e "visível" - "não - visível". Não estamos preocupados, também, em enxergar um produto audiovisual como um exemplo de "contra-história" do período, já que os pontos de contato e de refração do filme com os diversos projetos ideológicos que lhe dão suporte impedem uma classificação tão niveladora da obra. As tensões existentes manifestam-se por meio da recuperação daquilo que para Ferro é secundário: a análise fílmica.
Nos anos 90, a partir deste e de outros referenciais, o cinema ingressa de maneira definitiva no universo do historiador brasileiro. Livros, teses, dissertações de mestrado, artigos em publicações especializadas e diversos tipos de materiais paradidáticos atestam a consolidação de um campo de trabalho no qual o fazer histórico procura integrar a dimensão imagética. Um indicativo deste fortalecimento no que diz respeito à historiografia estrangeira é, por exemplo, a presença na The American Historical Review, desde 1997, de uma seção dedicada ao comentário histórico de filmes que contribuem para o entendimento do passado e, conseqüentemente, para o debate histórico.
Em sintonia com este fértil momento, apresentamos a proposta de uma página da web dedicada ao exame das relações entre cinema, televisão e história. As atividades propostas e realizadas tem por objetivo contribuir para a consolidação teórica de uma área de pesquisa já incorporada nas atividades exercidas em sala de aula e nos diversos meandros do labor acadêmico.
Notas
[1] G. M. S. Le cinéma et l'histoire: un document de 1898. In: Cultures, (1): 233, 1974. Segundo o artigo, o autor do documento, Boleslas Matuszewski, era "consciente do que era história, sensível ao que poderia ser o cinema (...) analisando as relações mútuas destas duas formas de expressão".
[2] A pesquisa histórica no Brasil, 4ª ed., 1982, p. 174 - 176. O historiador está particularmente preocupado com as possibilidades de "falsificação" do cinema. Para ele, "toda a crítica externa e interna que a metodologia da história impõe ao manuscrito impõe igualmente ao filme. Todos podem igualmente ser falsos, todos podem ser 'montados', todos podem conter verdades e inverdades".
[3] Esta incorporação ocorre nos domínios da chamada História Nova. Esta corrente do pensamento historiográfico francês, em linhas gerais, relativiza a importância do fato histórico, pois "o facto não é em história a base essencial de objectividade ao mesmo tempo porque os factos históricos são fabricados e não dados e porque, em história, a objectidade não é pura submissão aos factos" (Jacques Le Goff. História. In: Enciclopédia Einaudi, Memória - História, p. 167). Ver também Jacques Le Goff e Pierre Nora (orgs), História: novos objetos, 1976, e Jacques Le Goff, "L'histoire nouvelle", In: Jacques Le Goff e outros (orgs.), Les Encyclopédies du Savoir Moderne - La Nouvelle Histoire. 1978, p. 210 - 241.
[4] Além de "O filme: uma contra-análise da sociedade?", op. cit., p. 213, ver também "Société du XXe. siècle et histoire cinematographique", In: Annales, (3):584, 1968.
[5] L'histoire sous surveillance, 1985, p. 116 e 119.
[6] O historiador avalia a potencialidade da fonte em função do documento escrito, do saber sobre o passado, ancorado na história e no fato. "Assim os documentos 'vivos' permitiriam mostrar melhor que nunca o papel das multidões e a responsabilidade da opinião pública na origem deste conflito; mas, em contrapartida, era praticamente impossível refazer uma seqúência que revelasse ao espectador as causas econômicas da guerra; ou a relação entre estas causas e as causas políticas" (Cf. "L'experience de La Grande Guerre", In: Annales, 20 (2): 333 - 334, mars - avril 1965).
[7] Analyse de film. Analyse de sociétés, 1975, p. 55.
[8] Cinéma et Histoire, 1977, p. 50 - 51.